sexta-feira, 14 de julho de 2017

O UNIVERSO MARAVILHOSO DOS CONTOS TRADICIONAIS


Jacob  e Wilhelm Grimm retratados por Elisabeth Jerichau-Baumann (1855) 

Quem conta um conto que é parte
De nossa ancestralidade
Difunde, divulga arte
Velha como a humanidade.

Quando os irmãos Jakob e Wilhelm Grimm registraram, em 1812, a literatura oral de seu país, a Alemanha, não faziam ideia do sucesso de sua iniciativa, em especial no tangente aos contos populares, a parte mais significativa de sua recolha. O fato é que, com o êxito alcançado pelos Contos da criança e do lar, outros pesquisadores europeus, impregnados do mesmo espírito romântico que moveu os alemães, foram a campo em busca de lendas, baladas, romances e das velhas histórias narradas ao pé do fogo, sementes espargidas e cultivadas no fértil solo da imaginação humana. Quando o termo folclore foi consignado em 1848, pelo inglês William John Thoms, sob o pseudônimo de Ambrose Merton, em artigo publicado na revista The Atheneum, o conto tradicional, irmão da lenda e filho do mito, já havia alcançado, em vários países, a merecida atenção dos escritores e estudiosos. 
Antes, a novelística popular mereceu registros em recriações literárias, algumas em versos, como Os contos de Canteburry, de Geoffrey Chaucer, e os lais de Maria de França, ainda no século XII. Em prosa, destacam-se as jornadas do Decameron, de Giovanni Boccaccio, o livro do Conde Lucanor, de D. Juan Manuel (1335), Os contos de proveito e exemplo, de Gonçalo Fernandes Trancoso, além do impressionante Pentamerone (1636), de Giambattista Basile, obra-prima do barroco italiano. Inspirado neste último, sem a mesma espontaneidade, Contos da Mamãe Gansa, de Charles Perrault, coletânea moralista celebrizada pelo tempo e contemplada com muitas reedições, levou à corte francesa as histórias da gente humilde, devidamente polidas e adaptadas ao gosto do (nobre) freguês. Isso sem falar no conjunto monumental de histórias prevalentemente maravilhosas, o  livro das Mil e uma noites, apresentado ao Ocidente pelo francês Antoine Galland, cujo primeiro volume foi publicado em 1704.

Coube a Adolfo Coelho Portugal a empresa de ser o desbravador desta seara em Portugal, com Contos populares portugueses, publicado em 1879. Foi seguido por Consiglieri Pedroso, autor de Portuguese folktales (1882), em edição inglesa, e por Teófilo Braga, com Contos tradicionais do povo português (1883). Igualmente relevante, a antologia de Contos tradicionais do Algarve, de Ataíde Oliveira, reuniu 400 contos do sul de Portugal, ampliando a área geográfica e as possibilidades de comparação e confronto.
Silvio Romero, pioneiro na recolha e nos estudos 
das tradições populares

No Brasil, a iniciativa pioneira coube a Silvio Romero, autor de Contos populares do Brasil (1885), publicado originalmente em Portugal, com organização e notas de Teófilo Braga. Antes, o estudo do geólogo canadense Charles Frederik Hartt, Os mitos amazônicos da tartaruga (1875), com o Jabuti, grande trickster dos contos indígenas, e a coletânea O selvagem (1876), do General Couto de Magalhães, apresentaram contos de origem indígena ou tradicionalizados entre os povos nativos da Amazônia. A coletânea de Sílvio Romero, no entanto, teve o mérito de ser abrangente, enfocando além dos supostos contos indígenas, contos de origem africana e europeia. Há que se levar em conta o esforço do coletor, que se dispensou de um trabalho comparativo, privilegiando critérios antropológicos e raciais, em voga na época. E, por isso mesmo, incorreu em equívocos, como o de arrolar entre os contos africanos Doutor Botelho, história na qual um macaco aparece como auxiliar do herói de origem humilde, que, graças aos seus préstimos, acaba casando-se com uma princesa. Apenas esta breve descrição nos mostra ser esta, em linhas gerais, a hoje conhecidíssima história do Gato de botas, divulgada por Charles Perrault, na versão literária do século XVIII. A coletânea se reveste de grande importância, também, por abrir uma picada, inspirando, em diferentes épocas, outros pesquisadores das tradições populares.
Imprescindíveis são as obras de Lindolfo Gomes (Contos populares brasileiros, 1915), João da Silva Campos (Contos e fábulas populares da Bahia, 1928), Aluísio de Almeida (142 histórias brasileiras, 1951) e Luís da Câmara Cascudo (Contos tradicionais do Brasil, 1946). Mais recentemente, sobressaíram-se Ruth Guimarães, Waldemar Iglésias Fernandez, Oswaldo Elias Xidieh, Doralice Alcoforado, Bráulio do Nascimento, Altimar Pimentel e Edil Costa.
Paulo Correia e Isabel Cardigos com o fundamental
Catálogo dos contos tradicionais portugueses

Ainda assim, são, lamentavelmente, raras as coletâneas de contos tradicionais brasileiros colhidos diretamente da fonte. Raras diante das possibilidades oferecidas por um país de dimensões continentais, diverso na cultura e nas variantes linguísticas, nascidas das profundas desigualdades, reveladoras de nossas mazelas, mas também da resistência de povos de diferentes matrizes e matizes. A
 recolha de contos de “primeiro grau” será sempre bem-vinda, especialmente por mostrar que, em pleno século XXI, as árvores do Jardim da Tradição ainda dão saborosos frutos. Nesta seara, os trabalhos de minha autoria (Contos folclóricos Brasileiros e Contos e fábulas do Brasil), encontram-se classificados de acordo co
m o Catálogo Internacional do Conto Popular, o Sistema ATU[*] As principais referências vêm do monumental Catálogo dos contos tradicionais portugueses (com as versões análogas dos países lusófonos), de Isabel David Cardigos e Paulo Jorge Correia, com o qual, orgulhosamente, colaborei. 
Em qualquer recolha que se preze, todos os informantes e os locais do registro devem ser identificados. Se a literatura dos antigos salvou do esquecimento os deuses e heróis, os contos de tradição oral, por outro lado, preservam episódios e estruturas arcaicas, informações sobre ritos e mitos, nos conectando a um tempo que, talvez, somente nos sonhos e nos domínios do inconsciente, ousávamos perscrutar.
Marco Haurélio


[*] Em 1910, foi publicado o livro Types of the Internacional Folktales, do finlandês Anti Aarne que reuniu, em um catálogo, os tipos predominantes dos contos orais. Em 1962, a obra foi revista e ampliada pelo folclorista norte-americano Stith Thompson, e os contos catalogados passaram a ser conhecidos pela sigla AT (em homenagem aos dois estudiosos) seguida por um número que indicava o gênero a que pertenciam. Em 2004, o alemão Hans-Jorg Uther atualizou o sistema, que passou a ser chamado de ATU. Os contos de animais vão do número 1 ao 299. Os maravilhosos, do 300 ao 749. Os religiosos, do 750 ao 999, e assim por diante. 

Um comentário:

  1. Maravilhoso texto. Como brasileiro me envergonhei em não conhecer Sílvio Romero. Parabéns pelo belíssimo texto. Suas postagens estão maravilhosas. Parabéns! Grand abraço. Laerte.

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