quinta-feira, 7 de julho de 2011

O cavalo como principal auxiliar mágico dos contos populares

Gravura de Severino Ramos de visível inspiração surrealista.
O cavalo, animal psicopompo em muitas religiões primitivas, é o auxiliar mágico do herói em vários contos populares. No livro Contos e fábulas do Brasil, o cavalo aparece no conto que abre a coletânea, a fábula O cavalo e os macacos, no papel de animal astucioso.

Também está presente em dois contos de encantamento: A Serpente Negra e O príncipe Cavalinho. No primeiro, é o condutor do herói no retorno à sua casa, depois de passar uma temporada num reino subterrâneo (que Vladimir Propp, em Raízes históricas do conto maravilhoso, associará ao mundo dos mortos), ao lado da esposa encantada em serpente. No segundo, é um príncipe, vítima de uma maldição involuntária, condenado a ser parte do tempo um cavalo.

Na literatura de cordel, tributária de muitos contos tradicionais, o cavalo como auxiliar mágico do herói aparecerá em obras como Três cavalos encantados e três irmãos camponeses, de José Camelo de Melo Resende, História da Princesa da Pedra Fina, de autor desconhecido (não confundir com O Reino da Pedra Fina, de Leandro Gomes de Barros), e em O boi mandingueiro e o cavalo misterioso, de Luís da Costa Pinheiro. Neste último seria melhor classificá-lo como ajudante sobrenatural.

Como animal auxiliar do herói, o cavalo aparece no poema Agha Veli, de Jean Moréas, abaixo reproduzido na admirável tradução feita pelo poeta gaúcho Fontoura Xavier (1856-1922). O "fim-do-mundo", para onde o herói é conduzido, também foi estudado por Propp na obra citada. É o "Reino dos Confins", que fica além dos limites estabelecidos.

No seu palácio encantado
De mil andares de porte,
Entre a nobreza da corte,
Cisma Agha Veli sentado.

Pelos salões espaçosos
Ressoam notas festivas...
Os eunucos aos convivas
Servem vinhos capitosos.

Ao clarão dos candelabros,
À voz das harpas, sonora,
Voam em giros macabros
As escravas de Bassora.

De súbito, num assomo
De mão oculta que impele,
Entra, sem se saber como,
Uma ave e diz: “Agha Veli,

A tua bela de opala,
Princesa de sangue azul,
Vai amanhã desposá-la
O filho do rei de Thul”.

Agha Veli ouve-a congesto
E grita por um cavalo,
Que venha, rápido e presto,
Junto à princesa levá-lo!

"Mais veloz que o vento alado,
Qual de vós, rompendo a treva,
Antes que seja o sol nado,
Ao fim do mundo me leva?”

“Mais que o vento pressuroso
E o próprio raio iracundo
(Responde um corcel fogoso)
Eu levo-te ao fim do mundo”.

E parte como um demônio...
Florestas, vales, montanhas,
Rios, cidades, campanhas,
Somem-se num pandemônio.

Vê-o da sua caverna
O dragão em sobressalto
Transpondo apenas dum salto
O pico onde o lhama inverna.

A devorar horizontes
No seu galopar sem trégua
Corre por vale e montes
Em cada passo uma légua.

Mas dentro em momentos, antes
Que ressurja o sol no espaço,
Ante um préstito arquejante
Detém o sinistro passo.

Em vez de cantos de boda
Ouvem-se preces e rezas...
Filas de velas acesas
Pontilham a noite toda.

É um enterro de donzela,
Talvez donzela e princesa,
Vai de branco e de capela
Os símbolos da pureza.

Dizei-me rápido e breve
(Agha Veli à turba exorta)
Quem nesse esquife de neve
A esta hora enterra-se, morta?

"É a bela da cor de opala
Princesa de sangue azul;
Ia amanhã desposá-la
O filho do rei de Thul.”


Gravura de Ivan Bilibin (1876-1942)

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